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Blog do Marcelo Alonso

A futebolização do torcedor de MMA

Em uma semana em que dois ex-campeões foram derrotados no UFC, trago para debate um assunto que tem chamado minha atenção nos últimos anos: a futebolização do torcedor de MMA.

Ultimamente tenho percebido um aumento dos fãs brasileiros que importam a virulência dos estádios de futebol. Uma postura que costuma ser marcada pela absoluta intolerância com a derrota, onde o vencedor não faz mais que a obrigação, o perdedor fica relegado ao linchamento nas mídia sociais, e só o campeão merece um “lugar no Olimpo”.

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Obviamente o MMA é um esporte que visa o entretenimento e, como tal, todo torcedor deve ter total direito de manifestar democraticamente sua insatisfação com a atuação de um lutador. Faz parte do jogo. Que fique claro que ninguém está falando em torcida politicamente correta ou cerceamento do livre direito de manifestação torcedor. Criticar as atuações dos atletas, questionar escolhas táticas, cogitar “resultados combinados” e até xingar a mãe dos juízes fazem parte da “instituição” torcida e até mesmo da emoção inerente à nossa latinidade. A questão aqui é só um mero chamado ao bom senso dentro da realidade de um esporte individual absolutamente singular como o MMA. Acabamos de entrar em 2020, ano que o UFC completa 27 anos, e todo fã que assiste ao MMA precisa entender que este é o único esporte profissional onde o lutador precisa treinar diversas modalidades para se preparar e, caso se contunda no treino, fica automaticamente impedido de exercer seu ofício, sem receber absolutamente nenhum retorno financeiro. Já imaginou ficar um ano sem trabalhar por conta de um impedimento físico? Há de se levar em conta ainda o fato de que mais de 600 atletas disputam 12 cinturões e, obviamente, nem todos podem ser campeões. Por isso, no MMA, perder e dar a volta por cima talvez seja a parte mais emocionante e interessante de toda a engrenagem.

Uma vez, entrevistando Georges St-Pierre, lembro que lhe perguntei como ele conseguia lutar contra um norte-americano em sua casa e ter a maior parte da torcida ao seu lado e ele me explicou que nem sempre foi assim: “Na realidade os torcedores americanos só passaram a me apoiar depois que perdi do Matt Hughes e devolvi a derrota. Acho que todo mundo passa por um momento de adversidade na vida, e quando me recuperei os fãs se identificaram e passaram a me apoiar”, revelou um dos maiores ídolos da história do esporte.

 

A arte de dar a volta por cima

Se você acompanha o MMA há mais de cinco anos, certamente já testemunhou vários exemplos de voltas por cima, como este dado por GSP.

Junior Cigano e Rafael Dos Anjos, aliás, são dois experts no assunto. Aos 35 anos, ambos já ganharam, perderam, chegaram a ser campeões e, depois de 12 anos (ambos estrearam no UFC em 2008) enfrentando os melhores de suas divisões, continuam entre os melhores.

Rafael dos Anjos, por exemplo, chegou ao UFC como faixa-preta unidimensional, perdendo duas seguidas e quase sendo demitido e, a partir daí, treinou tanto muay thai que passou a ser considerado um dos melhores strikers do MMA, tendo lutado 29 vezes pelo UFC enfrentando os maiores nomes de duas divisões. Perdeu 11, venceu 18. Assim conquistou o cinturão dos leves e chegou a lutar pelo título interino dos meio-médios. Faz todo o sentido que o torcedor que acompanha a trajetória do ex-campeão critique sua última atuação contra Michael Chiesa e até mesmo por estar vindo de quatro derrotas em cinco lutas, mas daí a tratá-lo como um técnico de futebol, que a torcida exige a demissão depois de quatro reveses, vai uma longa distância. Há de se levar em conta o histórico de superação do lutador e o fato de quatro dos cinco oponentes serem Top 5 da divisão dos meio-médios.

Rafael Dos Anjos of Brazil celebrates his submission victory over Neil Magny in their welterweight bout during the UFC 215 event inside the Rogers Place on September 9, 2017 in Edmonton, Alberta, Canada. (Photo by Jeff Bottari/Zuffa LLC)

Rafael Dos Anjos of Brazil celebrates his submission victory over Neil Magny in their welterweight bout during the UFC 215 event inside the Rogers Place on September 9, 2017 in Edmonton, Alberta, Canada. (Photo by Jeff Bottari/Zuffa LLC)


Apesar de terem trajetórias diferentes, o mesmo raciocínio vale para Junior Cigano. Um lutador que chegou invicto ao título, mas depois de perder duas vezes para Velasquez em guerras de 10 rounds, continuou treinando forte e voltou ao topo do ranking chegando a enfileirar três ranqueados. Perdeu no sábado para um dos lutadores mais completos da divisão, mas, não por acaso, continua na elite entre os quatro melhores pesos-pesados UFC. Mesmo não estando mais no seu ápice, é óbvio que Cigano ainda tem lenha para queimar. Exigir sua aposentadoria imediata, significa não entender que este esporte tem níveis.

O mesmo exemplo valeria para um novato que vem galgando posições no ranking nocauteando todo mundo, mas sofre a primeira derrota quando enfrenta um oponente no Top 5. Aliás, são pouquíssimos campeões que chegaram ao cinturão sem uma derrota. Rafael dos Anjos, Junior Cigano, Anderson Silva e José Aldo são exemplos de lutadores que cresceram a partir de reveses. Obviamente esta dinâmica é totalmente distinta num esporte coletivo como o futebol.

Não é sacrilégio reconhecer o mérito do oponente

Um outro aspecto essencial para entender melhor este esporte e ser mais justo enquanto torcedor está no reconhecimento do mérito do oponente. Este verdadeiro sacrilégio no mundo futebolístico é absolutamente essencial não só para o torcedor, mas principalmente para o lutador e seu treinador. Afinal de contas, o lutador que não reconhece suas falhas dificilmente será capaz de consertá-las.

Num esporte que engloba um conjunto gigantesco de técnicas marciais, onde obviamente fatores como talento, atleticismo e mental diferenciado são essenciais, mas normalmente o vencedor é aquele que consegue adicionar mais “ferramentas à sua caixa”, este entendimento é essencial. E um torcedor que consiga ter esta compreensão, certamente passará a valorizar mais os méritos do lutador vitorioso, ao invés de simplesmente desancar o derrotado.

Este é o caso de Curtis Blaydes contra Cigano, por exemplo. O brasileiro teve todo o mérito de adicionar ótimas defesas de wrestling ao seu jogo, mas o norte-americano venceu exatamente por ter mais armas, usando muito bem as fintas para não permitir que o brasileiro pudesse impor seu boxe. É natural que o torcedor que viu aquele Cigano campeão, que enfileirou nove oponentes e passou quatro anos invicto, fique chateado após a derrota e faça suas críticas, mas daí a exigir sua aposentadoria, vai uma longa distância.

O MMA brasileiro acabou?

Este é o comentário mais recorrente nas mídias sociais sempre que um ícone brasileiro perde uma luta. Sem dúvida, para aquele fã que começou a acompanhar o esporte quando a geração de Anderson Silva, Wanderlei Silva, Vitor Belfort, Rodrigo Minotauro, Lyoto Machida e Mauricio Shogun estava no ápice, a impressão que se tem é que o MMA brasileiro está em seu pior momento. Mas aqui vale aquela máxima do copo meio cheio. O fato é que a própria realidade do esporte mudou com sua democratização mundial. Basta analisarmos os atuais campeões do UFC para compreender que as duas maiores potências (Brasil e EUA) tiveram que ceder espaço para Rússia, Austrália, China, Nigéria e até Cazaquistão.

Mas se formos analisar pragmaticamente os números de 2019, não há razão para tanto pessimismo. No ano que passou tivemos brasileiros em seis disputas de cinturão; 34% do nosso plantel de lutadores terminou o ano entre os Top 15 nas 12 categorias. Sem contar que o Brasil nunca teve tantos contratados em 26 anos de história do UFC (101).

UFC women's bantamweight champion Amanda Nunes smiles after her unanimous-decision win over Germaine de Ranamie during UFC 245

E já que fizemos tantas comparações entre estas duas grandes paixões esportivas nacionais, termino este texto com um outro exemplo futebolístico. Passei toda a minha infância ouvindo meu pai relembrando a geração de 70, com Pelé, Rivelino e Jairzinho e lamentando a entressafra do nosso futebol, até que em 1994 surgiu a geração de Romário, Rivaldo, Ronaldo e Ronaldinho, que nos fez vibrar com duas Copas do Mundo.

É óbvio que vivemos uma entressafra, mas a boa notícia é que no MMA a renovação de talentos é muito mais rápida que no futebol e quem acompanha o UFC sabe do que estou falando. Basta lembrar quantos novos representantes nacionais você viu entrando no Octógono este ano. Obviamente uns já foram até demitidos, outros chegaram no ranking, mas é este processo incessante de renovação que nos permite poder apostar e acreditar, quase que mensalmente, em novos ídolos.

O fato é que o Brasil continua sendo, ao lado dos EUA, o maior celeiro de talentos do MMA. Com paciência, e entendendo cada vez melhor a dinâmica deste esporte, não tenho dúvidas que muito em breve a torcida brasileira voltará a ter grandes alegrias.

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